Deixem o STEM de lado: Eduquem para a liberdade

Na era da tecnologia e da ciência e em meio ao frenesi do STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), nossos filhos não são mais educados para serem livres mas escravos digitais. Eis que a educação clássica católica fundada nas artes liberais emerge como um caminho seguro para a verdadeira liberdade.

    John C. Pinheiro, The Imaginative Conservative | Tradução: Equipe Instituto Newman


Um mundo obcecado pela tecnologia

Minha sogra, uma avó maravilhosa e também uma artista premiada, gosta de comprar brinquedos STEM [1] (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) para minha filha de nove anos, geralmente brinquedos adequados para adolescentes de dezesseis anos ou que contenham compostos explosivos. [O que é, no mínimo, peculiar].

No Halloween deste ano, a avó-artista enviou à minha filha não materiais de artes ou tintas, mas um esqueleto de metal bidimensional. Até aí, tudo bem, mas esse esqueleto veio com dezenas de pequenas etiquetas magnéticas, com os nomes científicos de cada osso do corpo humano. 

Como você pode ver, era um esqueleto STEM, conforme o fabricante rotulou. Mas que, de fato, me assustou foi o fato de que a letra era tão pequena que minha filha me perguntou por que o “osso público” (a fonte era pequena demais para que ela percebesse que tratava-se do osso púbico) era assim chamado, já que é uma área que deveria ser privada, não pública. Ou seja, na fase em que deveríamos expor nossas crianças ao maravilhamento, à admiração, às brincadeiras e aos contos de fadas, a brigada STEM nos diz que, ao invés disso, devemos prepará-las para carreiras nas áreas da engenharia e da ciência.

Redescobrindo as artes liberais 

Esse episódio me fez pensar na distinção feita por John Henry Newman entre as artes servis e as artes liberais, além de questões sobre a finalidade da educação em primeiro lugar. Ora, certamente um brinquedo classificado como “STEM” pode convencer uma avó carinhosa a comprá-lo.

No entanto, brinquedos assim são como histórias infantis mal escritas, que não usam o maravilhamento apenas para entreter ou a história apenas para ensinar. Pelo contrário, eles são pretensiosos e tentam atingir a criança com uma abordagem didática excessivamente moral. É claro que, a maioria das crianças rejeita tanto esses brinquedos quanto essas histórias instintivamente, pois percebem que trata-se de arte ruim bem como pedagogia ruim.

Certamente, é possível estender essa questão da infância para a educação universitária. Em 2004, eu estava em meu primeiro ano como professor de história na Aquinas College (Faculdade São Tomás de Aquino) quando a faculdade recebeu o Cardeal Francis George para uma palestra sobre catolicismo e aprendizado liberal.

Formando sábios e santos

Lembro-me de ter sido inspirado quando o Cardeal George descreveu a união entre a educação católica e as artes liberais — uma educação voltada para a integração da sabedoria e do discipulado, decorrente de uma eclesiologia adequada e enraizada na tradição intelectual católica. Ele demonstrou a feliz complementaridade da fé e da razão e a vivência de uma vida moral.

De fato, fiquei tão inspirado que me esforcei para falar com ele depois de sua palestra. Após um bate-papo sobre a educação superior católica, perguntei-lhe se ele achava que essa educação seria possível no Aquinas. Ele respondeu com palavras que nunca mais esqueci: “Se não aqui, em uma escola com o nome de Santo Tomás de Aquino, então onde?” Conciso e direto ao ponto. E é verdade.

Os fundamentos da civilização

Ora, a humanidade pode ter sido criada para a liberdade, mas foi primeiramente a sabedoria grega e judaica e depois a revelação cristã que levou o homem a perceber que a liberdade deve ser ordenada e usada corretamente, e que isso nem sempre é fácil. Afinal, temos uma natureza decaída, bem como a livre escolha de perverter ou aperfeiçoar o amor.

Sendo assim, seria possível ensinar homens e mulheres a serem livres? Acaso é necessário ensinar a alguém a liberdade? Porventura, precisamos aprender a diferença entre direitos e deveres, entre liberdade e permissão, entre verdade e erro? E se essas coisas precisam ser ensinadas, como deve ser essa educação — uma educação libertadora, e, ao mesmo tempo, para pessoas livres? Certamente, ela deve incluir STEM. Mas será que deve começar ou terminar aí? No final das contas, Dostoiévski disse que a beleza, e não o STEM, salvará o mundo.

Desenvolvendo a mente e o espírito

Diante disso, que tipo de educação uma faculdade autenticamente católica deve oferecer numa época em que buscar a verdade é considerado intolerante e agressivo? A resposta é: o mesmo aprendizado liberal e humano que a Igreja sempre privilegiou e que deu frutos nas universidades da Europa Medieval.

Este é o tipo de educação que compreende plenamente a natureza humana e suas necessidades. Além disso, baseia-se numa antropologia que enxerga o homem de forma correta. E, acima de tudo, torna possível a verdadeira sabedoria ao reconhecer a unidade de toda a verdade.

Sem uma compreensão adequada do homem, é provável que uma faculdade se torne um espelho da sociedade norte-americana e de seu governo agressivamente secular. Ou seja, um local onde indivíduos díspares que dividem um espaço finito encontram-se em uma guerra hobbesiana, impedidos do caos apenas pelo Leviatã e pela apatia intelectual e moral. Com certeza, essa não é uma receita para a busca e o conhecimento da verdade, algo para o qual nossas mentes foram criadas. 

Uma busca honesta pela verdade 

E, uma faculdade deve ser uma comunidade orientada para uma busca genuína da verdade em todas as coisas. Isso não significa que todos estejam de acordo sobre, para usar a definição de verdade de Aristóteles, “o que é e o que não é”. Allan Bloom descreve melhor esse tipo de comunidade e explica por que, em sua natureza, uma comunidade acadêmica é aquela em que a diversidade é uma conclusão inevitável, e a discordância civil é comum porque todos estão buscando a verdade das coisas: 

“A verdadeira comunidade do homem… é a comunidade daqueles que buscam a verdade…. Mas, na verdade, isso inclui apenas alguns, os verdadeiros amigos, como Platão era para Aristóteles no exato momento em que eles estavam discordando sobre a natureza do bem. A preocupação mútua com o bem os unia; seu desacordo sobre ele provava que precisavam um do outro para entendê-lo”.

Essa unidade da verdade, entretanto, exige um currículo unificado e uma abordagem holística da vida no campus. Uma faculdade pode ter um corpo docente de intelectuais católicos — acadêmicos que contribuam de forma consciente com o diálogo entre fé e razão e que, portanto, participem de uma tradição intelectual católica viva — e ainda assim falhar com seus alunos.

Somente intelectuais católicos, ensinando o que quer que seja, não será suficiente para inculcar a sabedoria e o discipulado. A mera existência de uma universidade não é suficiente. Assim como, acrescentar STEM à mistura não é o bastante, mesmo que os alunos passem a ter empregos bem remunerados como engenheiros. 

O valor da educação humanística e religiosa

Em seu livro, A Godly Humanism, [“Um Humanismo Divino”, sem tradução portuguesa] o Cardeal George argumenta que “a disjunção do currículo é uma fonte muito mais poderosa de relativismo do que qualquer doutrina pregada por qualquer membro do corpo docente”. Por quê? Pois se a unidade da verdade não for reconhecida, sem teologia e filosofia para integrar as disciplinas, então a palavra universidade está apenas no nome. Na realidade, trata-se de uma multiversidade, mergulhada no relativismo por omissão, porque não tem uma estrutura integral para relacionar as verdades descobertas nas disciplinas. 

A fé e a razão

Da mesma forma, São João Paulo II, em sua encíclica Fides et Ratio nos adverte que o relativismo, fruto da separação entre fé e razão, tem como consequência “o obscurecimento da verdadeira dignidade da razão, impossibilitada de conhecer a verdade e de procurar o absoluto” (n. 47). Logo, enquanto a fé e a razão forem consideradas antagônicas entre si, como os ideólogos do iluminismo continental afirmavam, e como muitos norte-americanos ainda acreditam, essa hostilidade entre ciência e fé, entre pesquisa e fé, tornará qualquer aprendizado verdadeiramente liberal quase impossível. 

Em outras palavras, um currículo desarticulado, embasado no divórcio entre fé e razão, não pode superar adequadamente o que Bento XVI chamou de “ditadura do relativismo”. E, por fim, só tornará essa ditadura mais forte. A fé não será mais capaz de ver o entendimento pois não acreditará que este possa ser encontrado; o entendimento, por sua vez, dirá que a fé não leva a nada de objetivo. Assim, a conversa entre fé e razão, que produziu as primeiras universidades do mundo há mil anos, cessará. É dessa maneira que homens e mulheres saem das faculdades modernas menos livres do que quando entraram quatro anos antes. Eles estão, para usar a frase ilustrativa do Cardeal George, “em rota de colisão com a realidade”.

O papel das artes humanas  

O objetivo de todo aprendizado humano é nos tirar dessa “rota de colisão” liberando nossas mentes para buscar e conhecer a verdade sobre nós mesmos. E isso é o que as ciências humanas fazem de melhor. Devemos estimar a sabedoria do passado em vez de descartá-la diante das críticas que a chamam de simplória, obscura e ultrapassada, caso contrário estaremos fadados a falhar no futuro. Assim também, o nosso futuro um dia será o passado de alguém que, caso desconsidere as nossas realizações como superstições e bobagem, falhará 

Ao fazer isso, saímos da comunidade orgânica que Edmund Burke chama de comunidade de almas passadas, presentes e futuras. Também damos as costas a uma conversa que vem ocorrendo desde, pelo menos, o século V a.C. 

Enfim, passaremos a viver apenas para o hoje, como fazem os animais, focados somente nos apetites sensíveis. É claro que a simples inclusão de STEM no currículo para manter-se “atualizado” e agradar os clientes — os alunos e seus pais — não mudará esse fato. Ora, os alunos podem ter inúmeros desejos — inclusive STEM—  mas uma educação corretamente ordenada lhes dará o que precisam, e não necessariamente o que querem. Em uma educação adequada, o cliente nem sempre tem razão.

Uma educação que liberta 

No final das contas, o que há de “liberal” nas artes liberais é que elas nos libertam de nosso tempo e lugar para explorar as questões perenes da humanidade colocadas por São João Paulo II na Fides et Ratio: Quem sou eu? De onde vim e para onde estou destinado a ir? Por que existe o mal? O que há depois da vida? Eu acrescentaria a essas perguntas: qual é o relacionamento adequado entre o indivíduo e sua comunidade, e seu estado, e com Deus?

O papel disciplinar da história é especialmente valioso aqui, pois nos libera para conhecer as raízes de nossa identidade a fim de nos tirar de um presentismo escravizante. Assim, ficamos livres para entender melhor nosso próprio mundo e imaginar como podemos nos esforçar para santificá-lo e torná-lo mais propício ao florescimento humano.

Dessa forma uma faculdade de artes liberais deve educar para a sabedoria, não só para os fatos, porque a sabedoria nos permite fazer boas escolhas e discernir o que é importante do que não é. Paralelamente, uma educação em artes liberais é aquela na qual não buscamos o conhecimento pelo conhecimento nem pela mera praticidade. E, finalmente, uma educação cristã em artes liberais deve capacitar os formandos a usar sua liberdade para escolher o bem.

Enfim uma educação verdadeira 

Tudo isso quer dizer, portanto, que a antropologia cristã é essencial, não acessória ou acidental, para a autêntica educação católica em artes liberais. O homem não pode libertar-se da insensatez por meio de bobagens ou libertar-se da monotonia através do relativismo que traz consigo o tédio metafísico e o ceticismo doentio. A busca pela verdade e o reconhecimento de sua unidade são a principal diferença entre uma educação autenticamente católica e uma educação secular. Somente a verdade liberta (cf. Jo 8, 36).

As faculdades autenticamente católicas precisam estar abertas à totalidade da verdade porque honram o diálogo entre a fé e a razão. Bem como devem preparar seus formandos para uma vida de liberdade para fazer boas escolhas e discernir adequadamente o importante do supérfluo. Somente em retrospecto é que um aluno poderá perceber quão grande era o seu anseio pelos transcendentais da verdade, da beleza e da bondade. Como produto de uma educação católica em artes liberais, ele perceberá que esse anseio é natural e contínuo e que, como disse Peter Kreeft, nunca se pode ficar muito satisfeito com a verdade ou entediado com a beleza.

Por isso, encerrarei com a sabedoria de Russell Kirk, que escreveu muito sobre educação e como é o ser humano educado:

E, ao serem educados, eles compreenderão que não sabem tudo; e que existem outros objetivos na vida além do poder, do dinheiro e da gratificação sensual; eles terão uma visão de longo prazo; olharão para trás, para os antepassados, e para a posteridade. Para eles, a educação não terminará no dia do início do curso.

Referências
  1. Nota do Tradutor: Usa-se a sigla STEM em Inglês para designar as quatro matérias escolares consideradas de suma importância nos currículos atuais e na pedagogia moderna. Tratam-se da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática; se pegarmos as primeiras letras de cada uma delas, science, technology, engineering, and mathematics temos STEM. A palavra stem, em letras minúsculas, entretanto, tem outros significados, como tronco ou caule. 

 

John C. Pinheiro é Diretor de Pesquisa do Acton Institute. É autor do premiado Missionaries of Republicanism: A Religious History of the Mexican-American War (Oxford, 2014) e The American Experiment in Ordered Liberty (Acton Institute, 2019). O Dr. Pinheiro também foi professor de história e diretor fundador de estudos católicos no Aquinas College em Grand Rapids, Michigan.  

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