Engasgado com o discurso dos direitos

O uso excessivo e confuso do termo “direitos” no discurso público moderno tem gerado um impacto profundo na forma como entendemos liberdades e responsabilidades. No contexto da “licença para abortar” disfarçada sob o eufemismo “direitos reprodutivos”, uma crise cultural e moral emerge, desafiando as bases de um debate democrático saudável. Neste artigo, exploramos como a separação entre direitos e responsabilidades está contribuindo para o colapso da liberdade ordenada em nossa sociedade.


George Weigel, National Catholic Register | Tradução: Equipe Instituto Newman


No seu livro visionário, Rights Talk: The Impoverishment of Political Discourse, (O Discurso dos direitos: O empobrecimento do discurso político) [1] Mary Ann Glendon, da Faculdade de Direito de Harvard, avisou os seus concidadãos americanos, em 1993, que a nossa vida pública estava passando por um processo de degradação devido ao uso promíscuo da linguagem dos “direitos” como um intensificador retórico em campanhas para promover várias coisas diferentes: coisas que os Fundadores e os autores da Constituição nunca teriam imaginado como “direitos”.

A Erosão do Discurso Público

O “discurso dos direitos”, advertiu a professora Glendon, coloca o indivíduo contra a comunidade, pois privilegia a autonomia pessoal, e a ideia de “eu faço do meu jeito” em detrimento do bem comum. E isso, concluiu, vai ser muito prejudicial para a experiência americana de liberdade ordenada a longo prazo. Pois bem, o longo prazo finalmente chegou, e os resultados são tão desastrosos quanto Glendon havia previsto.

Direitos Reprodutivos ou Eufemismo?

Em nenhum outro contexto essa decadência em direção à incontinência verbal gerou um odor público tão desagradável quanto no uso desregrado da expressão auto-contraditória “direitos reprodutivos”. Afinal, o que esse termo poderia significar, a menos que estivéssemos no País das Maravilhas de Alice? “Direitos reprodutivos” nada mais é que um eufemismo para aborto. O aborto eletivo é a destruição voluntária de um ser humano numa fase inicial do seu desenvolvimento. Como a destruição de um ser — cuja humanidade biológica é confirmada em manuais de ensino médio — poderia ser um direito reprodutivo, se o processo visa interromper a reprodução através da expulsão do útero ou do desmembramento do bebê?

A Adoção Política do Termo Direitos Reprodutivos

No entanto, esse termo flagrantemente enganoso — e, de fato, absurdo — “direitos reprodutivos” foi recentemente adotado pelo candidato presidencial do Partido Republicano, logo após a Convenção Nacional Democrata celebrar o aborto como se fosse um sacramento cívico, o grande sacramento perante o qual todos deveriam se curvar em adoração.

Direitos Versus Responsabilidades 

Há algo profundamente perturbador em tudo isso. Os murmúrios sobre o “menor dos males” oferecem pouco consolo, especialmente quando o que está sendo defendido como um “direito” como se fosse o mal menor é, na verdade, a destruição deliberada de uma vida humana inocente — o que é, além de uma blasfêmia, o maior dos males.

A política costuma refletir a cultura, e, se nossa política está distorcida a ponto de tornar a licença para abortar quase um sacramento, há algo de gravemente errado com nossa cultura moral pública. Como, então, podemos reconstruir um espaço público onde a verdade prevaleça sobre o eufemismo, e o debate sério substitua as acusações em que cada lado alega a violação de seus supostos direitos?

Um caminho possível é recuperar a noção católica clássica de que os “direitos” estão sempre ligados a responsabilidades. Na obra de teoria política católica ainda atual, We Hold These Truths: Catholic Reflections on the American Proposition (Nós defendemos essas verdades: Reflexões Católicas sobre a Proposta Americana) [2], o padre jesuíta John Courtney Murray, enquanto explorava o significado mais profundo dos direitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa, explicou esta ligação nos seguintes termos: 

Essas instituições não se baseiam na teoria tênue própria do racionalismo individualista do século XVIII, segundo a qual um homem tem o direito de dizer o que pensa simplesmente porque pensa. (…) A premissa adequada dessas liberdades reside no fato de que elas são necessidades sociais essenciais para a condução de um governo livre, representativo e responsável. As pessoas que são chamadas a obedecer têm o direito de serem ouvidas primeiro. As pessoas que devem suportar fardos e fazer sacrifícios têm o direito de se pronunciar primeiro sobre os propósitos aos quais seus sacrifícios servem. As pessoas que são convocadas a contribuir para o bem comum têm o direito de fazer seu próprio julgamento sobre a questão, se o bem proposto é realmente bom, o bem do povo, o bem comum.

O Caos dos Direitos Sem Responsabilidades

Quando os direitos são dissociados das responsabilidades, a praça pública se transforma em um campo de batalha, onde as reivindicações de direitos estão em constante e, muitas vezes, brutal disputa pela sobrevivência. Isso não é deliberação democrática, mas sim um caos intelectual e moral que pode levar à autodestruição da liberdade. Murray expressou o risco de uma América sufocada por reivindicações de direitos conflitantes em termos dramaticamente elegantes: talvez, um dia, “a nobre mansão de muitos andares da democracia [possa] ser desmontada, nivelada às dimensões de um majoritarismo raso, que não é uma mansão, mas um celeiro, ou até mesmo um depósito de ferramentas, onde se possam forjar as armas da tirania”.

O então cardeal Joseph Ratzinger abordou o mesmo tema ao alertar sobre a invasão da ditadura do relativismo um dia antes de sua eleição como Papa Bento XVI. Ainda não chegamos a esse ponto, mas o uso persistente e desmedido da linguagem e da razão, refletido em termos como ‘direitos reprodutivos’, acelera o dia do acerto de contas.

 

Referências
  1. N.T. Tradução nossa, pois o livro mencionado não foi publicado em português.
  2. N.T. Tradução nossa, pois o livro mencionado não foi publicado em português.

O Autor

George Weigel é membro sênior ilustre e titular da cadeira William E. Simon em Estudos Católicos no Ethics and Public Policy Center, em Washington.

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