Cartas Sobre a Graça — As Vocações e a Igreja

O seguinte texto é apenas a primeira em uma série de “Cartas sobre a graça trocada entre” o renomado autor americano Peter Kwasniewski e o editor britânico Sebastian Morello. A sequência completa encontra-se publicada, com a permissão de ambos os autores, no site OnePeterFive, entretanto, por tratar-se de um intercâmbio bastante extenso decidimos publicar as cartas individualmente.  


Peter Kwasniewski, OnePeterFive | Tradução: Equipe Instituto Newman


Reflexões sobre Monasticismo Beneditino

Caro Sebastian,
Minha esposa e eu, ambos oblatos beneditinos, lemos em voz alta ontem à noite seus três ensaios sobre o monasticismo beneditino publicados no The European Conservative. Nossos pontos de vista coincidem em grande parte. Norcia é o lugar da Europa que mais visitei — provavelmente dez vezes até agora. Frequentei uma escola secundária beneditina e trabalhei como acadêmico em mosteiros beneditinos. Faço retiro em Gower, Missouri, com os beneditinos de Maria. Somos pássaros da mesma plumagem.

Assim como você, vejo o racionalismo como a questão principal, e seu argumento de que a mobilidade e a impermanência dos frades e o clericalismo promovido pelas ordens clericais posteriores contribuíram para um certo tipo de racionalismo em que o cristianismo era visto mais como um consentimento proposicional do que como um modo de vida é certamente convincente.

A Efusão Criativa das Ordens Clericais

Mas isso pode ser um pouco simplista. Os próprios frades e, mais tarde, as ordens clericais da Contra-Reforma, promoveram uma vida litúrgica grandiosa. Eles construíram suas próprias igrejas magníficas, desenvolveram formas como o oratório e a cantata. Houve uma efusão criativa e um alcance como poucos períodos da Igreja jamais viram. Os mosteiros nunca tiveram a intenção de atingir esses objetivos, que pareciam especialmente adequados ao surgimento de grandes cidades, onde os mosteiros normalmente não se sentiriam em casa. E certamente devemos a codificação (eu preferiria dizer “canonização”) do antigo Rito Romano em sua plenitude medieval a um papa dominicano, Pio V.

Acho que você deveria dar uma olhada no recente (além de útil e compacto) livro de Urban Hannon, Thomistic Mystagogy [Mistagogia Tomista]. Ele defende de forma convincente que Santo Tomás está muito alinhado com a tradição alegórico-espiritual medieval da liturgia. Isso tornaria o Aquinate muito mais monástico do que mendicante, segundo sua opinião. É claro que Santo Tomás estudou, como uma criança oblata, em Montecassino, então isso faz sentido. 

Tensões em Santo Tomás e o Papel da Contemplação

É verdade que ele defendeu a vida mista, como você disse. Porém, há tensões em Aquino sobre esse tópico, assim como há tensões em Aristóteles sobre se a vida filosófica ou política é mais elevada. Além do mais, Aquino, em seus momentos mais agostinianos, defende a contemplação como a atividade mais elevada e o telos simplesmente falando (certamente isso é verdade no céu!).

Tenho um livro a ser lançado no final de 2024 chamado Anatomy of Transcendence: Mental Excess and Transport in the Thought and Life of Thomas Aquinas [Anatomia da Transcendência: Excessos Mentais no Pensamento e na Vida de Tomás de Aquino], no qual dedico boa parte do tempo a explorar por que nunca se poderia dizer de Aquino, pelo menos, que ocorreu uma mudança de “pessoa litúrgica” para “pessoa que aceita certas proposições”.

A Clericalização e a Tradição Beneditina

Uma discordância mais substancial diz respeito à opinião moderna de que São Bento não era um presbítero. O Cardeal Schuster dedica muitas páginas de sua esclarecedora obra, St. Benedict and His Times [São Bento e seu Tempo] para explicar por que todas as evidências apontam para o fato de o santo ter sido um sacerdote. 

Além disso, não está claro para mim que a tendência medieval de ordenar “monges do coro” como sacerdotes, a fim de aperfeiçoar sua oferta diária do sacrificium laudis por meio da chamada “missa privada” (sobre a qual um artigo muito perspicaz de um padre francês acaba de ser publicado no New Liturgical Movement) deve necessariamente ser vista como uma “clericalização” negativa. 

A ênfase cluniacense na oração diária, tanto comunitária quanto individual, é muito anterior às ordens mendicantes e às ordens clericais que se seguiram. Além disso, ela dependia muito de um exército robusto de “irmãos leigos”, preservando essa dupla compleição (clerical e leiga), a qual você enfatiza com razão.

Os Clérigos e Leigos na Igreja

Eu aplaudo a seguinte declaração bem clara: “Os clérigos deveriam santificar os leigos e os leigos deveriam santificar o mundo”. Esse é quase um resumo de uma linha de meu livro Ministers of Christ: Recovering the Roles of Clergy and Laity in an Age of Confusion [Recuperando as Funções do Clero e dos Leigos em uma Era de Confusão]. Bem, para ser exato, também gasto boa parte do tempo defendendo as ordens menores tradicionais como parte da antiga e necessária hierarquia eclesiástica.

Certamente concordamos com o abuso do termo “vocação”. E sua crítica ao gerencialismo eclesiástico é a melhor que já vi, e seu refrão contínuo de que precisamos, não de um novo São Bento, muito diferente, mas do mesmo São Bento, fazendo o mesmo tipo de coisa — obedientia, stabilitas loci, conversio morum [obediência, permanência em um local e conversão de comportamento] é retoricamente muito eficaz, pois a repetição imita sutilmente as próprias ideias que você está defendendo; obediência a uma regra, a permanência em um local para, assim, amá-lo e sacralizá-lo, e a mudança dos próprios modos para se adequar ao modelo.

A Fé e a Tradição

Você conhece o infeliz Hilarion Heagy? Ele foi primeiro um padre ortodoxo russo, depois um padre católico oriental — e depois abandonou o cristianismo para abraçar o Islã. Ao lê-lo, lembro-me de figuras como Frithjof Schuon, René Guenon, Titus Burkhardt, homens que sempre pareciam acabar no Islã. 

Embora eu possa respeitar intelectualmente os escritos teológicos e místicos de autores islâmicos, devo admitir que acho isso extremamente desconcertante, pois desistir de Cristo, o Logos encarnado, seria impossível para mim, independentemente de quão ruins as coisas estejam na Igreja.

De qualquer forma, fiquei impressionado com algo que ele escreveu há alguns dias em seu blog:

“Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7, 16). De muitas maneiras, esse foi o meu critério. Quais são os frutos, como eu os vejo em primeira mão? É certo que, em 2022, eu estava muito abalado por muitas das experiências que tive na Igreja, mesmo quando tentei me entregar completamente ao serviço de uma instituição que parecia cada vez mais desinteressada em sua própria sobrevivência. Em vez disso, parecia-me que “o mundo” — a dunya — era o foco principal de grande parte do cristianismo. Ou simplesmente da política. Isso, somado à perda da tradição — da tradição objetiva e de uma tradição esotérica mais profunda — e a um domínio cada vez mais totalitário da subjetividade no cristianismo (ou seja, “minha verdade”, “minha crença”, “meu relacionamento ‘especial’”, “minha realidade”, “meu entendimento”… etc.) Bem, eu não via unidade real em todos os lugares para onde olhava, mas sim uma cacofonia de caos.

 

Isso me fez lembrar de alguns temas de seus escritos recentes.

Obrigado, como sempre, por seu trabalho imensamente estimulante.

IN DOMINO,

Peter

 


O Autor 

O Dr. Peter Kwasniewski é formado pela Thomas Aquinas College e pela The Catholic University of America. Lecionou no International Theological Institute na Áustria, no Programa da Universidade Franciscana de Steubenville na Áustria e no Wyoming Catholic College, que ajudou a fundar em 2006. Atualmente, ele é escritor e palestrante em tempo integral sobre o catolicismo tradicional, tendo escrito muitos livros e publicado em uma grande variedade de sites. 

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