Em mais um artigo da série “Em Poucas Palavras” veremos como a leitura de O Hobbit, de J. R.R. Tolkien pode nos ajudar a entender o caminho da cruz. Joseph Pearce nos mostra que o pequeno Bilbo, apesar de parecer bem, estava, na verdade, doente. Ele sofria de mal chamado “doença do dragão”, cujo remédio era precisamente a aventura proposta por Gandalf.
Joseph Pearce, Crisis Magazine | Tradução: Equipe Instituto Newman
O Contexto Religioso em O Hobbit
R.R. Tolkien disse que sua obra-prima, O Senhor dos Anéis, era “evidentemente, uma obra fundamentalmente religiosa e católica”. Certamente, pode-se dizer o mesmo de sua obra anterior, O Hobbit.
Embora O Hobbit possa ser visto como uma espécie de capítulo anterior de O Senhor dos Anéis, a sua relativa leveza contrasta de forma idiossincrática com a seriedade desta última obra. Isto deve-se ao facto de O Hobbit ter sido escrito especificamente como um livro para crianças, enquanto O Senhor dos Anéis ultrapassou o seu papel originalmente pretendido como uma sequência. Quando Tolkien escreveu este último livro, ele assumiu proporções épicas e míticas, “crescendo” até à idade adulta no que diz respeito ao gênero.
A Doença do Dragão
A dimensão “fundamentalmente religiosa e católica” de O Hobbit encontra-se no seu tratamento da “doença do dragão”, que serve o mesmo objetivo moral catalisador que o poder do anel em O Senhor dos Anéis. Essencialmente, a doença do dragão é a possessividade das coisas, especialmente do ouro e das pedras preciosas, que tem um efeito prejudicial sobre a saúde moral da pessoa afetada, bem como um impacto destrutivo sobre os outros.
Como o nome da doença sugere, os dragões são particularmente propensos à doença do dragão. Smaug deita-se sobre o seu tesouro, guardando-o meticulosamente. Smaug está preso a ele. Não pode sair por receio de que um ladrão possa roubar algo na sua ausência. Ironicamente, ele é prisioneiro da própria coisa que está guardando. Está possuído pela sua possessividade em relação aos seus bens.
A Aflição de Bilbo Bolseiro
Tal como a aplicabilidade moral da possessividade de Smaug sugere, a doença do dragão não aflige apenas os dragões. Ela afeta as pessoas. Afeta os anões. Afeta os hobbits.
No início da história, Bilbo Bolseiro está sofrendo da doença do dragão, embora ele não perceba isso até mais tarde, e nós também não. É por meio da experiência dos sofrimentos e perigos da busca, e do espírito de auto-sacrifício que esses sofrimentos e perigos despertam, que Bilbo passa a entender por que a aventura era necessária para seu próprio crescimento moral e maturidade.
Quando conhecemos Bilbo pela primeira vez, ele é uma criatura viciada em confortos. Ele está deitado sobre todas as coisas agradáveis e aconchegantes com as quais se cercou.
Bilbo e Smaug: Um Paralelo
Logo no primeiro parágrafo da história, somos informados de que Bilbo vivia em “um buraco de hobbit, e isso significa conforto”. Como Smaug, o hobbit é possuído pela possessividade de seus bens. O dragão vive sob a montanha, o hobbit vive sob uma colina (na verdade, o hobbit vive em uma parte de Hobbiton chamada Underhill) [1]. A diferença entre o dragão que sofre da doença e o hobbit que sofre da mesma aflição é, portanto, apenas uma questão de escala.
A razão pela qual Gandalf diz a Bilbo que a aventura com os anões será boa para ele, apesar dos perigos físicos, é que Bilbo precisa se desapegar de suas posses materiais, e para isso ele deve distanciar-se delas. Ele precisa fugir do conforto do lar para experimentar a plenitude da vida, que envolve a aceitação voluntária do desconforto e do sofrimento como meio de servir aos outros de forma abnegada.
O Caminho da Santidade
Em suma, Bilbo Bolseiro precisa aprender a amar; ele precisa aprender a necessidade de dar a vida por seus amigos. As boas maneiras da domesticidade não são suficientes; ele precisa tomar sua cruz. Ele precisa deixar o conforto do lar para embarcar na aventura da vida, que não é apenas uma jornada, mas uma peregrinação. É o caminho da santidade, entendido alegoricamente; é a busca pelo céu.
Quando Bilbo volta para casa depois da aventura, a chaleira na lareira soa mais doce do que nunca porque ele não está mais possuído por ela. Ele está livre de seu vício nos confortos do lar. Ele se recuperou da doença do dragão. “Meu querido Bilbo!” exclama Gandalf. “Há algo errado com você! Você não é o hobbit que era.”
A Conversão de Bilbo
Bilbo mudou. De fato, ele mudou tão radicalmente que a única palavra real para isso é conversão. Portanto, é simbolicamente apropriado que ele seja “presumido morto” por seus vizinhos, já que esteve ausente por tanto tempo. Seu retorno para casa é um retorno dos mortos. Uma ressurreição. Bilbo aprendeu a morrer para si mesmo para poder viver para os outros. É a morte que leva à única vida que importa, uma vida de graça em Cristo.
Em seu nível mais profundo, O Hobbit é um comentário parabólico sobre as palavras do Evangelho de São Mateus que diz que onde estiver o nosso tesouro, ali estará também o nosso coração. É nesse sentido que O Hobbit pode ser visto como “uma obra fundamentalmente religiosa e católica”.
Referências
- N.T. Tolkien usa a palavra Underhill como um substantivo próprio para se referir ao local onde Bilbo mora, porém, trata-se de uma junção das palavras under — embaixo — e hill — colina. Portanto, o Hobbit vive, literalmente, embaixo da colina.
O Autor
Joseph Pearce é professor visitante de literatura na Ave Maria University e membro visitante da Thomas More College of Liberal Arts (Merrimack, New Hampshire). Autor de mais de trinta livros, ele é editor da St. Austin Review, editor da série Ignatius Critical Editions, instrutor sênior da Homeschool Connections e colaborador sênior da Imaginative Conservative e da Crisis Magazine. Seu site pessoal é http://www.jpearce.co.